Cristiane, Tamires, Bruna Benites e Marcia
Tafarel relatam como superaram adversidades em busca do sucesso e ajudaram a
abrir caminho às meninas de hoje.
Laura Spenazzatto tem 18 anos.
Atualmente, realiza o sonho de ser jogadora de futebol e está prestes a ser
federada, ou seja, virar oficialmente profissional. A caminhada teve seus
percalços. Aos sete anos, na pequena Iraceminha (SC), descobriu que jogar na
rua com os meninos e não ficar com as "patricinhas" e bonecas a
encantava mais. Aos 13, viajava para os treinos de futsal em Maravilha, ali
pertinho de casa. A trajetória continuou, jogou em Pinhalzinho e Modelo com o
professor Cleto Schuster. Em 2015, a mudança para Caçador para atuar no
Kidermann. Em 2016, o chamado do Iranduba, seu clube atual, e a ida para
Manaus. O cenário está longe de ser o ideal, mas as barreiras já quebradas por
outras gerações proporcionaram que Laura, hoje, possa continuar trilhando um
caminho com mais tranquilidade e menos preconceito, este que por vezes teima em
voltar. E essas gerações não tiveram trabalho fácil.
Chegar
em casa chorando porque era ofendida. Quando você é criança você sente muito.
Quando adulto você releva. Só porque eu estava na rua descalça jogando com os
meninos era ofendida. Essa parte foi triste. As outras acabei aprendendo a
lidar com elas. Essa parte marca muito. Chegar em casa chorando por ser
ofendida.
O
relato acima é de Cristiane, atacante da seleção brasileira e do Paris
Saint-Germain. A jogadora lembra que, quando criança, teve que tapar os ouvidos
para o preconceito. No interior de São Paulo, insistiu apesar do choro
constante ao voltar para casa depois das ofensas. A persistência a colocou no
topo e o nome da modalidade do país além das fronteiras. Levou a atleta a ser a
maior artilheira do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos entre homens e
mulheres. Levou Laura, a menina de 18 anos, a poder contar aos amigos, com
orgulho, que é jogadora de futebol.
Imagine
que Cristiane tem 31 anos. Pois Marcia Tafarel tem 48 anos. Há 30 anos, a
ex-meia da seleção brasileira buscava a chance de ser uma jogadora de futebol.
Trinta anos. A dificuldade já começava em casa por resistência de parte da
família, mas nunca da mãe e do avô.
- A minha primeira grande dificuldade foi a aceitação
da família. Minha mãe dava total apoio. Minha mãe é baiana e tudo que serve
para quebrar tabus ela apoiava. Ela achava que a mulher tinha capacidade de
fazer qualquer coisa que ela quisesse. Quando eu comecei a jogar na rua, minha
família, italiana, não achava que podia jogar na rua com os meninos e sim
cuidar da casa, ficar com as meninas. A família do meu pai italiana tradicional
não aceitava eu jogar com meninos pois achava coisa masculinizada. Minha vó não
gostava. Meu vô sentava na mureta para assistir. Meu vô e minha mãe eram
grandes incentivadores. Mas o resto da família não aceitava.
Se o tempo possibilitou a Laura poder exercer de forma
profissional e sem críticas sua profissão, Tafarel não teve tarefa fácil. Na
foi somente na infância a barreira. As mulheres que optavam por atuar recebiam
ofensas e gritos de desaprovação. Ela conta que foi levada pela mãe ao Bento
Atlético Futebol Clube aos 13 anos para um teste. Ela era a única menina. As
colegas que praticavam, em sua maioria, já eram casadas e isso balizada quem
tinha mais abertura para poder praticar profissionalmente.
- Quando eu passei a jogar competitivamente veio o
aquele preconceito geral de você escutar as pessoas do lado de fora gritando
“vai mulher macho”. Infelizmente o preconceito ainda existe, mas com outras
palavras. Eles sempre acham que menina que joga vai virar homossexual. Por isso
o futebol feminino tem uma barreira grande no Brasil e é um grande atraso. Não
jogo mais, mas sou treinadora e ainda escuto a pergunta de como consigo me
sustentar trabalhando com futebol feminino - diz ela, que atualmente é técnica
de futebol nos Estados Unidos.
Os obstáculos de outrora foram amenizados. Tafarel
acredita que o preconceito diminuiu, mas ainda é algo presente. Como ela conta,
as meninas, em sua grande maioria, ao menos podem escolher o que desejam
praticar na escola.
- Em termos de incentivo familiar melhorou. O
incentivo familiar hoje é maior. Antes você precisava quebrar tabus. Hoje a
família dá mais opção da menina praticar o esporte que ela gosta, acho. Lógico
que há famílias que vão contra, mas a grande maioria incentiva. Em termos de
cultura, ainda existe essa a barreira de menina jogando futebol, um preconceito
cultural que é mais difícil de quebrar. Mudar a mentalidade é difícil. Esse
preconceito não é cultural, por exemplo, nos Estados Unidos.
Tamires
é a lateral esquerda da seleção brasileira e joga no Fortuna, da Dinamarca.
Para chegar ao ápice, ela não venceu somente o preconceito envolto na
modalidade. Atualmente com 29 anos, engravidou aos 21 anos. Escutou de pessoas
que nunca mais voltaria a ser atleta pelo simples fato de ter tido a felicidade
de conceber Bernardo, seu filho. As frases quase a derrubaram, mas, com a ajuda
do marido César, chegou com méritos onde desejava em sua carreira.
- Eu lembro claramente. Quando descobri que estava
grávida e as pessoas descobriram sem ser minha família. Muitos falaram para
mim: "Acabou o futebol para você". Ouvi da boca de terceiros que o
futebol tinha terminado para mim. Mesmo que eu acreditasse em mim eu ainda não
era madura o suficiente. E por eu ser jovem eu absorvi essas coisas e por
alguns momentos acreditei que era verdade. Depois, vi que não era - diz
Tamires.
Capitã
da seleção brasileira no primeiro torneio sob comando da técnica Emily, em
dezembro, Bruna Benites ressalta que um fator foi decisivo para que seguisse
adiante mesmo com críticas de quem não via com bons olhos o futebol feminino há
alguns anos: orgulho. Quando ela percebeu que a mãe a admirava pelo seu
trabalho, foi suficiente para que não desistisse do sonho.
- A época mais difícil era na escola. Na educação
física, já separavam. Meninos jogavam futebol e meninas só vôlei e handebol. Se
as meninas queriam jogar tinham que jogar com meninos isso se o professor
deixasse. Eu acabava não jogando porque ficava sem jeito de ficar só uma menina
no meio dos meninos. E todos no colégio falavam: “Ela joga com meninos”. E
quando a gente é criança a gente se abala. Minha mãe me apoiava. Quando percebi
que ela sentia orgulho eu pensei que não precisava me preocupar com outros. Eu
sinto orgulho do que faço.
Laura
respira mais aliviada. Veste a camisa, calça a chuteira e segue com orgulho sua
carreira. Mas o preconceito continua naqueles que ainda defendem que o futebol
não é esporte para mulher. Naqueles que acreditam que lugar de mulher não é
onde ela quiser. Pois todas essas mulheres acima ousaram dizer que lugar de
mulher é sim onde quiser. Cristiane, Marcia Taffarel, Bruna Benites e Tamires
são só uma parte do universo feminino que luta diariamente para que o direito
seja de todas e todos igualitariamente. A luta nunca deixará de vir carregada
de esperança.
- Ninguém vai conseguir mudar o pensamento de todo
mundo. Sempre vai ter quem pense que menina não tem que jogar futebol. Mas já
deu uma boa melhorada. Vai ficar ainda melhor – aposta Laura.
Matéria especial publicada no globoesporte.com




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